II- “Eu quero um país que não está no retrato”

Comissão de frente da Mangueira “Eu quero um país que não está no retrato”. Imagem disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7430309/

” Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati “

Samba enredo Mangueira, 2019.

Brasil, o teu nome é Dandara: guerreira negra que lutou pela libertação dos negros e negras no período colonial.  E a tua cara é de cariri: indígenas do sertão brasileiro. Não veio do céu, nem das mãos de Isabel: a princesa “libertadora dos negros”. A liberdade é um dragão no mar de Aracati: Francisco José do Nascimento, líder jangadeiro, fazia parte do movimento abolicionista do Ceará. Estes são alguns personagens que a Mangueira trouxe em seu desfile para questionar a representatividade dos heróis nacionais. O desfile da Mangueira de 2019 entrou reivindicando um país que não está no retrato, fazendo-nos refletir sobre os nossos heróis nacionais oficiais, jogou para o público um debate já estabelecido dentro da  historiografia: negros e indígenas tiveram um papel muito maior na construção da identidade brasileira do que a história presente nos livros didáticos nos contam. Para refletirmos sobre como o personagem negro herói surgiu na História oficial do Brasil, utilizaremos o ensaio “O herói negro no ensino de história do Brasil: representações e usos das figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos brasileiros” da professora e historiadora Hebe Mattos. 

Como aparece, na história oficial, a identidade negra ao longo do tempo?

Segundo o ensaio, as figuras de Henrique Dias e Zumbi dos Palmares já apareciam no século XVII, em crônicas sobres as guerras de Pernambuco, na resistência contra a colonização holandesa. Neste período, o discurso heroico é muito evidente, ambos eram citados como figuras corajosas e grandes líderes. Zumbi dos Palmares, no período, era o grande herói por conta da narrativa que se estenderá até o início do século XX, de que teria se suicidado pois preferia a morte ao cativeiro.

Tomando como base Henrique Dias e Zumbi dos Palmares – os grandes líderes negros – há, no século XIX, um novo significado da identidade negra. Sob influência das perspectivas liberais radicais do período: antiescravista e anti-racista, mas, é bom lembrar: não abolicionista, a cor, agora, não poderia definir o caráter de um homem. 

Inicia-se então um movimento, de um lado, através de um discurso mais democrático, de recusar justificativas raciais no que tange a escravidão e ressaltar a coragem e o heroísmo, principalmente, de Henrique Dias, talvez por sua ligação direta com a Coroa, mas também de Zumbi. Nessa perspectiva, Zumbi dos Palmares deveria ser destacado por conta da grandeza de seu Quilombo e o nível de civilização ali instaurada.

Por outro lado, inicia-se, no século XIX, um outro movimento com outra perspectiva: um discurso mais elitista; Henrique Dias não era herói, era apenas chefe dos negros; com um papel não tão importante, aparece apenas em segundo plano como um radical, num esforço de associar sua imagem à posição de escravo. Nessa perspectiva elitista Zumbi também não era herói, era apenas negro, mas aqui, lê-se negro como sinônimo de escravo. A grandeza do Quilombo dos Palmares não é ressaltada e se torna um lugar de criminosos e desertores.  Nessa outra concepção, o herói era o bandeirante Domingos Jorge Velho – aquele que venceu Zumbi dos Palmares. 

Com a geração de 1870 refletindo sobre a formação da identidade brasileira através de termos raciais, inicia-se um processo de elaboração de uma raça brasileira. Segundo o ensaio de Hebe Mattos, a imagem do herói negro continua concentrada em Henrique Dias, enquanto que a imagem de Zumbi perde espaço para um novo componente, mais amplo e mais interessante: os negros libertos.

No século XX, a partir dos anos 1960, mais importante do que a heroificação de personagens negros, se torna a história da luta dos negros escravizados; os holofotes deixam de estar em quem é o herói negro e se voltam para a luta pela sobrevivência e pela a liberdade dessas pessoas. No entanto, é nesse contexto que Zumbi se consolida como herói nacional -através de pressões políticas de movimentos negros – e Henrique Dias desaparece da história. 

A questão que fica é: até que ponto estabelecer outros heróis nacionais não é apenas substituir um pelo outro? Talvez, vê-los como pessoas que constituíram a história do nosso país, pensando em suas contribuições para o contexto em que viveram seja mais interessante do que apenas apontá-los como heróis. Afinal, ter os holofotes da História voltados para apenas um personagem pode significar invisibilizar outros, assim como ocorreu com a figura de Henrique Dias no século XX.

Assista, no vídeo abaixo, a comissão de frente da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval de 2019. O vídeo completo pode ser encontrado na Conclusão do Blog.

Comissão de Frente “Eu quero um país que não está no retrato” Estação Primeira de Mangueira, Carnaval 2019. Via Rede Globo

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