II- “Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”

No ano de 1982, a Revista Mulherio publicou um artigo escrito pela historiadora Lélia González, chamado “De Palmares às escolas de samba, tamos aí”. Trinta e sete anos depois, este poderia facilmente ter sido a manchete de inúmeras revistas e jornais referenciando e trazendo a reflexão em torno das provocações trazidas pelo desfile da Escola de Samba Mangueira de 2019, em que, como o carnavalesco responsável da escola Leandro Vieira evidenciou logo ao início da exibição do Desfile na televisão brasileira:

“O enredo da Mangueira é um olhar para a história do Brasil interessado nas páginas dos ausentes: a história de índios, negros e pobres. Heróis populares que não foram para os livros. Gente que a gente não aprende na escola. É a história (…) de tantos outros que não tiveram protagonismo .”

O Desfile da Mangueira nos chama à refletir principalmente sobre nossa trajetória escolar e quais narrativas são sempre evidenciadas pelas bases curriculares, livros didáticos, pela mídia, pela história pública em geral, etc. Se nos questionarmos quais sujeitos e regiões têm visibilidade e agencia ativa ao longo da historicidade, quais destes aparecem? A certeza que temos é que estes não são os negros, os índios, as mulheres, não-europeus. A partir desta reflexão central é que discutiremos neste post as representações e imaginários em torno da construção de narrativas históricas de sujeitos negros e como o desfile da Mangueira também contribuiu para a reflexão de como é construído nossos olhares às populações africanas e afro-descendentes, sobretudo afro-brasileiras.

As representações e narrativas construídas em torno de sujeitos negros sempre foram criadas através de olhares do Outro, qual era cercado de interesses. Ao longo século XIX, o chamado racismo científico europeu passou a evidenciar cada vez mais as construções de imaginários em torno do que seria continente africano, sujeitos africanos e africanos escravizados, sendo estes considerados primitivos, inferiores, passivos, marginais, etc. Até hoje podemos observar as consequências e reproduções da construção desses imaginários, principalmente em reproduções de falas, representações e inúmeras violências racistas, que para a filosofa brasileira Sueli Carneiro, a partir de Boaventura Sousa Santos, tem como uma das principais consequências o chamado epistemicídio:

“(…) o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo.”

(CARNEIRO, 2005)


Zumbi dos Palmares, é um sujeito negro que teve sua trajetória marcada na luta antirracista ao longo da história das lutas de sujeitos, organizações e movimentos negros afro-brasileiros e que nos faz repensar muitas construções que estão em volta. Uma das pautas dos movimentos negros brasileiros – sobretudo o Movimento Negro Unificado (MNU) ao longo do século XX era a efetivação do dia 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, sendo este o marco da execução de Zumbi em 1695. Lélia González, que além de historiadora foi militante do MNU, escreveu, no mesmo artigo do jornal, na década de 1980, sobre a importância da memorização de Zumbi e desta data para a luta antirracista; todavia, durante sua escrita, é essencial que possamos refletir sobre a construção das narrativas e heroicização de sujeitos históricos. A partir do trecho a seguir, nos abre o questionamento: a heroicização de sujeitos históricos evidência e contribui para uma narrativa que os coloca enquanto sujeitos ativos? Ou apenas “inverte a pirâmide”, como escreve o sociólogo Carlos Lopes em “A pirâmide invertida” (1995), enaltecendo e heroicizando determinados sujeitos sem colocá-los enquanto sujeitos ativos?

“(…) o negro Zumbi dos Palmares, assassinado nesse mesmo dia, no ano de 1695, pelos representantes do escravismo. Seu ‘crime’ foi ter liderado uma luta de vida ou morte por uma sociedade justa e igualitária; onde negros, índios, brancos e mestiços viviam do fundo de seu trabalho livre e eram respeitados em sua dignidade humana. Essa sociedade efetivamente democrática, existiu em Palmares, que foi o primeiro Estado livre das Américas e um Estado criado por negros.”

(GONZÁLÉZ, 1982)

No ano de 1983, o escritor Abdias do Nascimento, junto à outras e outros membros dos movimentos negros brasileiros marcam mais uma das representações em torno de Zumbi e de Palmares: a memorização e reconhecimento do espaço onde havia sido Palmares, pelo  Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN). A década de 80 marcou, também a institucionalização do chamado Instituto Palmares, em prol do reconhecimento e garantia de direitos de de comunidades quilombolas brasileiras e a legitimação do 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência Negra, como é possível salientar através da gravação presente no acerto da plataforma digital do IPEAFRO:
http://ipeafro.org.br/acervo-digital/videos/abdias-no-memorial-zumbi-1983/?fbclid=IwAR0zNjmtraAeR_7D3kGaT5Vk820yzN3eiKxJp8R1irIWuinYujEBMzvZ_Yw

Podemos observar como as representações e construções narrativas são diversas e plurais, como no próprio desfile da Mangueira. Ao longo da narração dos jornalistas durante a exibição dos desfiles na tv aberta, foi possível observar certos comentários, principalmente quando houve a aparição do carro alegórico marcando a história de Palmares junto à Zumbi, Dandara e Aqualtune; figuras relembradas e heroicizadas, sobretudo pelos movimentos negros; que devem ser refletidas, questionadas de o porquê não estão presentes nos livros didáticos e na chamada “história oficial”; e se estão, como tem sido suas representações.

As falas mais recorrentes dos jornalistas referindo ao carro alegórico foi o colocando como “um altar, como se esses heróis estivessem sincronizados nesse altar”; “os quilombos eram isso; para manter as tradições culturais e abrigar esses negros que conseguiam fugir”; “o quilombo era para recriar a África”; e “são muitas histórias que a gente desconhece, né”. Portanto, por que não conhecemos tais histórias? Será mesmo desconhecimento ou invisibilidade de narrativas não hegemônicas? Falar e colocar como sujeitos históricos e ativos, negros, índios e pobres e, logo, questionar e romper a chamada história oficial, buscando outras referências, narrativas e memórias é vantajoso para quem? E por que nas escolas, nos livros didáticos, nos planos curriculares, na mídia e em nossa memória nacional, não enaltecemos tais sujeitos, espaços, narrativas e povos? Que resistem até os dias de hoje contra todo histórico genocida e epistemicida. Pois, como cantam um dos versos do samba enredo deste ano da Mangueira:

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
…”

“Ao morrerem, tornaram-se vivas na nossa memória.”

(GONZÁLEZ, 1982)

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