Apresentação

A plataforma digital é uma produção realizada por discentes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) , como requisito para a conclusão da disciplina Historiografia Brasileira. Nosso trabalho consiste na construção de um blog organizado a partir de textos e suporte audiovisual. Pretendemos estruturar tópicos ao longo da discussão pensando a figura do Bandeirante, do Indígena e do Negro na História do Brasil. Finalizaremos com uma problematização das representações desses personagens ao longo do tempo, pensando principalmente as ressignificações do tempo presente. Utilizaremos como base os textos: “Bandeirantes na contramão da História: um estudo iconográfico”, de Maraliz Christo; “O herói negro no ensino de história do Brasil: representações e usos das figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos brasileiros”, de Hebe Mattos; “Primavera para as rosas negras”, de Lélia González e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.

Integrantes do Blog

Bianca Marlene da Silva
Emilly Ferreira Bento
Laíza Rodrigues de Oliveira
Leonardo Rauthier Brandi
Yasmin Dias Corrêa

I – A construção dos bandeirantes enquanto heróis

Quem são os heróis ou heroínas que conhecemos nas escolas? Como surge este personagem? Ou melhor, como ele ou ela aparece em nossa história? No Brasil, em avenidas, grandes edifícios, escolas e praças identificamos nomes que comumente aparecem na história aprendida nas salas de aula. Dentre eles, Duque de Caxias, Marechal Deodoro, a Princesa Isabel e Tiradentes. Refletindo sobre o tema, fato é que este é um espaço da história reservado para poucos. Mas quem os seleciona? Dentro de quais interesses? Na presente publicação, direcionaremos nosso olhar para trabalhos realizados dentro da historiografia brasileira que nos auxiliam a esclarecer estes questionamentos, pensados a partir da proposta apresentada pela escola da samba Estação Primeira da Mangueira, que nos faz refletir sobre os “heróis emoldurados” e os inúmeros protagonismos que não são contemplados pela “História Oficial”. Colocaremos sob destaque uma figura particular à história do Brasil: o Bandeirante.
Fernão Dias Paes, Raposo Tavares e Anhanguera são nomes de antigos bandeirantes reconhecidos em todo o país. Identificam escolas, monumentos e importantes rodovias que atravessam o território nacional, perpetuando a memória desse personagem nos espaços públicos brasileiros. Mas, quem eram esses tais “bandeirantes”? Primeiramente, vale destacar que este personagem surge na história do Brasil pelos movimentos de entrada no território que iniciaram século XVI, interessados na exploração da terra através da busca por recursos minerais, na escravização de mão de obra indígena para o trabalho nas zonas de produção, auxiliando, consequentemente, na posterior ampliação da influência portuguesa sobre o grandioso continente. Apresentados enquanto grandes aventureiros, o discurso em torno do bandeirante endossou a perspectiva de heroísmo sobre o personagem, que por um longo período integrou a narrativa historiográfica na posição de um notório desbravador, que embrenhando por matas desconhecidas configurou os limites territoriais da nação, aventurando-se em busca de metais precisos. Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, historiador do século XX, é possível compreendermos a narrativa que acompanhou esse sujeito:

“A expansão dos pioneers paulistas não tinham suas raízes do outro lado do oceano, podia dispensar o estímulo da metrópole e fazia-se frequentemente contra a vontade e contra os interesses imediatos desta. Mas ainda esses audaciosos caçadores de índios, farejadores e exploradores de riqueza, foram, antes do mais, puros aventureiros – só quando as circunstâncias o forçavam é que se faziam colonos.”

(HOLANDA, Sérgio Buarque de. p. 102)

O sucesso de um bandeirante, de certa forma, beirava cada novo horizonte, imaginário que tomou forma em suas representações, como podemos observar nas esculturas de Raposo Tavares e Fernão Dias Paes, realizadas pelo artista italiano, Luigi Brizzolara, para o Museu Paulista.

Esculturas dos bandeirantes Fernão Dias Pais Leme e Raposo Tavares, de Luigi Brizzolara. Museu Paulista.
O primeiro bandeirante é representando ao admirar uma pedra preciosa e o segundo à investigar os horizontes

Uma idealização representativa se configurou sobre a figura desse personagem, caracterizado em diversos momentos como um verdadeiro europeu: com a pele clara, barbas longas e portando armas imponentes. E é exatamente sobre esta forma de apresentá-los que propomos colocar sob avaliação. Partindo de todo o litoral brasileiro, o movimento dos bandeirantes se iniciou na região que hoje identificamos por São Paulo, antiga Capitania de São Vicente, umas das poucas bem-sucedidas no Brasil colonial – sucesso empreendido a partir das relações estabelecidas entre colonos e os indígenas que habitavam aquela região, a partir de interesses mútuos. Sobre essa região, Sérgio Buarque de Holanda, apontou: “terra de pouco contato com Portugal e de muita mestiçagem com forasteiros e indígenas”. (HOLANDA, Sérgio Buarque de. p.102) Portanto, é possível afirmamos tratar-se de uma população essencialmente mestiça, o que nos encaminha a uma reavaliação da figura do bandeirante, homens que em sua maioria possuíam descendência indígena e europeia. Desta maneira, ao analisarmos a representação de Domingos Jorge Velho, bandeirante caboclo, tetraneto de índios tupiniquins e tapuias, é possível questionarmos sua idealização enquanto homem de características do Velho Mundo, de barbas longas e roupas alinhadas, construção pictórica que o identifica até hoje, formalizada por Benedito Calixto em 1903, para o Museu Paulista.

Devemos ter em mente que essa concepção em torno do bandeirante é fruto de uma construção narrativa e para melhor compreendermos o contexto que estruturou o personagem como o conhecemos atualmente, utilizaremos como base o trabalho da historiadora Maraliz Christo, intitulado “Bandeirantes na contramão da História: um estudo iconográfico”, realizado em 2002. Nele, a pesquisadora analisa duas propostas iconográficas em conflito, a do historiador Afonso d’Escragnolle Taunay, e a dos pintores Henrique Bernardelli e Rodolpho Amoedo – personagens envolvidos com a decoração do Museu Paulista, construído no final do século XIX.

Cabe destacar que além de historiador, Afonso d’Escragnolle Taunay foi também diretor do museu no início do século XX, idealizando uma narrativa historiográfica que mantinha São Paulo como centro de influência nacional. Fortaleceu-se um discurso de legitimação da região, decorrente de sua ascensão econômica no início do século, advindos da produção cafeeira e do processo industrial. Partindo deste contexto, Taunay endossou simbolicamente uma visão gloriosa de São Paulo, fundamentando-se, para tanto, na figura do Bandeirante paulista – “responsável” pela expansão territorial. Assim, ele estimulou um discurso legitimador desse herói, consagrando-o no Museu Paulista, para o qual encomendou obras de arte que valorizassem o personagem Bandeirante aos olhos do público. “Taunay entende o museu enquanto espaço pedagógico, onde o passado é apresentado às massas, sacralizado, dotado de um sentido”. (CHRISTO, 2002).

Refletindo sobre a idealização heroica intencionalmente construída para a representação do bandeirante, Maraliz Christo agrega em nosso debate, pois traz em seu trabalho trechos de cartas escritas pelo historiador Taunay, que buscava influenciar o pintor Henrique Bernardelli à uma iconografia do herói sob seus parâmetros. Nesse trecho selecionado pela historiadora, o diretor se opunha à figuração já realizada por Bernardelli, que parecia “pouco heroica”, visto que ele se encontrava relaxado e fumando.

S.Paulo, 20 de Julho de 1922

Prezado Amo Snr.Bernardelli.

[…] E como este quadro vae figurar numa galeria em que todos tem attitude heróicas, não será de receiar que elle venha representando um homem numa situação despreocupada como quem está a fumar? Receio que dahi nasça uma certa heterogeidade com os demais quadros e estatuas. Assim lhe pediria que suprimisse o cachimbo. O seu quadro deve [ficar] ao lado da estatua do seu irmão que representa Pedro I a arrancar o topico portuguez. Ora, poderá causar extranheza ver-se um homem figura principal da tela, a fumar entre o Imperador nesta attitude heroica e o conquistador de Goyas estatua de Zani apoiado no seu arcabuz em posição de combate; não pensa assim? (…)”

Carta de Taunay para Henrique Bernardelli, datada de 20/07/1922.
Ciclo da Caça ao Índio, última versão do quadro realizado por Henrique Bernardelli para o Museu Paulista – dentro dos princípios de representação do herói de seu diretor, Afonso d’Escragnolle Taunay.

Pelo fragmento disponibilizados por Maraliz Christo, e evidenciado em nosso trabalho, é possível compreendermos a preocupação minuciosa de Taunay em construir a imagem de um bandeirante heroico, impulso que se materializou na tela, posteriormente enviada por Henrique Bernadelli ao Museu Paulista, intitulada: Ciclo da Caça ao Índio, no qual através de uma pose imponente, muito semelhante à postura de monarcas, o Bandeirante toma forma no imaginário nacional.

Esse apelo iconográfico que se materializou nas obras atualmente conhecidas sobre o personagem, que integram até hoje o espaço dos livros didáticos sem serem questionadas.

Bibliografia de Referência:
– HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220p.
– CHRISTO, Maraliz C. V. Bandeirantes na contramão da História: um estudo iconográfico. Projeto História.  São Paulo: PUC-SP, v. 23 (Arte da História & outras linguagens), p. 307-335, 2002.
– D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. 432 p.

Em nossa reflexão, também utilizamos como base o material disponibilizado pelo Museu Paulista: “Estamos Aqui! Bandeirante: um personagem em debate”. Disponível em:
http://www.mp.usp.br/chamadas/estamos-aqui-bandeirante-um-personagem-em-debate

I – “O sangue retinto por trás do herói emoldurado”

A imagem do Bandeirante está consagrada na história do Brasil. São Paulo, como vimos anteriormente, reivindicou um imaginário em torno do personagem no início do século XX e dedicou diversas homenagens ao seu “herói desbravador”, lembrado por nomear espaços públicos, representado em consagradas telas históricas e em grandiosos monumentos – perpetuando sua memória na história nacional.

No entanto, ao reavaliarmos a biografia desse personagem, verificamos trajetórias não tão heroicas, marcadas por violências e omissões. Reconhecidos enquanto espíritos aventureiros e desbravadores dos sertões por sua busca por jazidas de minérios que, inclusive, lhe renderam apelidos como “Caçadores de esmeraldas”, e, além disso, por terem influenciado diretamente na expansão do território nacional, ignora-se, muitas vezes, que as glórias dos Bandeirantes se ergueram pela escravização e extermínio indígena, além da destruição de aldeias jesuíticas – pois atuavam por interesses que nem sempre eram compatíveis com os de Portugal.

Monumento às Bandeiras, realizado por Victor Brecheret em 1954. Localizado no Parque Ibirapuera, em São Paulo. A escultura representa o sentido de entrada das bandeiras nos interior do país.

Dos nomes já indicados em outra publicação, podemos destacar a figura de Raposo Tavares, que traz em sua história o aprisionamento de mais de cem mil nativos. Ou ainda, de Domingos Jorge Velho, responsável pelo massacre de diversos povos no Norte e Nordeste do país, tendo comandado tropas paulistas contratadas para a destruição do quilombo de Palmares. Todos eles, lembrados por representações iconográficas que não trazem sequer traços da violência que praticaram.

Ao compreendermos as seleções discursivas que acompanham o legado dos Bandeirantes, o discurso que entende a História enquanto uma narrativa que elege seus atores, emoldura sua trajetória e apaga protagonismos, se torna mais evidente e por este motivo, cumpre destacarmos o processo de reavaliação da narrativa que envolve esse personagem, nosso objetivo principal na presente publicação.

O esforço em revisitar a história do Brasil, repensando a construção de heróis nacionais vem sendo largamente contemplado pela historiografia recente, por instituições como o próprio Museu Paulista (que oferece uma interessante análise crítica das representações de Bandeirantes que integra seu acervo), em desfiles de escolas de samba, e principalmente, por diversas etnias indígenas, que organizadas em uma série de movimentos, questionam a consagrada memória do Bandeirante na atualidade.

Refletindo sobre o protagonismo político do movimento indígena nacional, cabe ressaltar seu importante empenho em evidenciar os apagamentos que permeiam nossa história, denunciando o genocídio indígena que se alastra pelo Brasil desde sua invasão pelos europeus, até os dias de hoje. Como exemplo deste fato, selecionamos um trecho do Manifesto Antirruralista da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), realizado em 2016, no qual fica nítida a acusação e ressignificação do Bandeirante, encarnado na figura de ruralistas e governantes, responsáveis na atualidade por questões como o garimpo ilegal, a escravização de índios e o desmatamento.

Nós, indígenas guarani de todas as aldeias de São Paulo, realizamos hoje mais um ato pacífico em defesa das nossas terras e dos nossos direitos, contra o ataque daqueles governantes dos brancos que insistem em nos dizimar. Fechamos agora a Avenida Pedro Alvares Cabral, que homenageia o primeiro branco que invadiu as nossas terras, para protestar contra a bancada ruralista, reunida agora nesta Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, enquanto defendem o fim das demarcações de terra indígena através da PEC 215, num palanque de ódio contra nossos povos e vários outros excluídos desta sociedade brasileira. Nossa expectativa é desmascarar a farsa dos ruralistas, e terminar pacificamente nosso ato novamente em frente ao Monumento às Bandeiras, que homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Os ruralistas de hoje são os bandeirantes de ontem, e por meio da caneta querem nos matar como nos mataram no passado com suas armas de fogo. Têm o espírito dos bandeirantes aqueles que usam de seu poder para enriquecer e concentrar terras, enquanto nós povos originários continuamos nas beiras de estrada, espoliados de nossos tekoa, e grandes massas de excluídos seguem sem ter onde dormir, sem ter onde morar, sem ter onde plantar. Enquanto os brancos homenageiam em estátuas, ruas e rodovias aqueles que nos mataram, seus governantes continuam encarnando o espírito dos bandeirantes.

– MANIFESTO ANTIRRURALISTA DA COMISSÃO GUARANI YVYRUPA (CGY)

Vale comentar que o Manifesto apresentado se formalizou através de um Ato realizado em São Paulo, que se estruturou em oposição à Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215), que propunha alterar os desígnios da Constituição de 1988, transferindo para o Congresso a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação no Brasil – significando a proibição para expansão dos poucos territórios já demarcados.

Contrários à decisão que beneficia diretamente a classe ruralista brasileira, os manifestantes organizaram uma intervenção de importância simbólica no conhecido Cartão-postal Paulistano: o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Nessa mobilização, jogaram tinta avermelhada nos corpos representados na escultura, simbolizando o sangue derramado por Bandeirantes, que direcionam os cavalos à frente do monumento.

Desfile da Estação Primeira da Mangueira: “A História que a História não conta”. Este é o segundo carro da escola, identificado como “O sangue retinto por trás do herói emoldurado”. Representa o genocídio indígena decorrente das expedições dos bandeirantes.

Recordando do trecho “Tem sangue retinto pisado
atrás do herói emoldurado”
, presente no enredo da Mangueira, não poderíamos deixar de abordar em nossa discussão o último tema desenvolvido pela escola de samba, que em seu desfile nomeado “A História que a História não conta”, apresentou como uma de suas alegorias o carro Bandeirantes, o segundo do desfile. Nesse surpreendente trabalho, mais uma vez, podemos notar a menção crítica ao Monumento às Bandeiras lembrado por uma história manchada de sangue, onde as palavras “Assassinos” e “Ladrões” foram estampadas.

Índios ao redor de um Monumento que consagra os Bandeirantes na memória nacional, faziam referência aos milhares que não puderam contar sua história, silenciados e apagados pela “História Oficial”. Separamos ao final, um trecho do desfile no qual os debates aqui tratados foram contemplados:

Referências:
– Site da Comissão Guarani Ivyrupa: http://www.yvyrupa.org.br/sobre-a-cgy/
– HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220p.
– CHRISTO, Maraliz C. V. Bandeirantes na contramão da História: um estudo iconográfico. Projeto História.  São Paulo: PUC-SP, v. 23 (Arte da História & outras linguagens), p. 307-335, 2002.
– D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. 432 p.
Em nossa reflexão, também utilizamos como base o material disponibilizado pelo Museu Paulista: “Estamos Aqui! Bandeirante: um personagem em debate”. Disponível em:
http://www.mp.usp.br/chamadas/estamos-aqui-bandeirante-um-personagem-em-debate


II- “Eu quero um país que não está no retrato”

Comissão de frente da Mangueira “Eu quero um país que não está no retrato”. Imagem disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7430309/

” Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati “

Samba enredo Mangueira, 2019.

Brasil, o teu nome é Dandara: guerreira negra que lutou pela libertação dos negros e negras no período colonial.  E a tua cara é de cariri: indígenas do sertão brasileiro. Não veio do céu, nem das mãos de Isabel: a princesa “libertadora dos negros”. A liberdade é um dragão no mar de Aracati: Francisco José do Nascimento, líder jangadeiro, fazia parte do movimento abolicionista do Ceará. Estes são alguns personagens que a Mangueira trouxe em seu desfile para questionar a representatividade dos heróis nacionais. O desfile da Mangueira de 2019 entrou reivindicando um país que não está no retrato, fazendo-nos refletir sobre os nossos heróis nacionais oficiais, jogou para o público um debate já estabelecido dentro da  historiografia: negros e indígenas tiveram um papel muito maior na construção da identidade brasileira do que a história presente nos livros didáticos nos contam. Para refletirmos sobre como o personagem negro herói surgiu na História oficial do Brasil, utilizaremos o ensaio “O herói negro no ensino de história do Brasil: representações e usos das figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos brasileiros” da professora e historiadora Hebe Mattos. 

Como aparece, na história oficial, a identidade negra ao longo do tempo?

Segundo o ensaio, as figuras de Henrique Dias e Zumbi dos Palmares já apareciam no século XVII, em crônicas sobres as guerras de Pernambuco, na resistência contra a colonização holandesa. Neste período, o discurso heroico é muito evidente, ambos eram citados como figuras corajosas e grandes líderes. Zumbi dos Palmares, no período, era o grande herói por conta da narrativa que se estenderá até o início do século XX, de que teria se suicidado pois preferia a morte ao cativeiro.

Tomando como base Henrique Dias e Zumbi dos Palmares – os grandes líderes negros – há, no século XIX, um novo significado da identidade negra. Sob influência das perspectivas liberais radicais do período: antiescravista e anti-racista, mas, é bom lembrar: não abolicionista, a cor, agora, não poderia definir o caráter de um homem. 

Inicia-se então um movimento, de um lado, através de um discurso mais democrático, de recusar justificativas raciais no que tange a escravidão e ressaltar a coragem e o heroísmo, principalmente, de Henrique Dias, talvez por sua ligação direta com a Coroa, mas também de Zumbi. Nessa perspectiva, Zumbi dos Palmares deveria ser destacado por conta da grandeza de seu Quilombo e o nível de civilização ali instaurada.

Por outro lado, inicia-se, no século XIX, um outro movimento com outra perspectiva: um discurso mais elitista; Henrique Dias não era herói, era apenas chefe dos negros; com um papel não tão importante, aparece apenas em segundo plano como um radical, num esforço de associar sua imagem à posição de escravo. Nessa perspectiva elitista Zumbi também não era herói, era apenas negro, mas aqui, lê-se negro como sinônimo de escravo. A grandeza do Quilombo dos Palmares não é ressaltada e se torna um lugar de criminosos e desertores.  Nessa outra concepção, o herói era o bandeirante Domingos Jorge Velho – aquele que venceu Zumbi dos Palmares. 

Com a geração de 1870 refletindo sobre a formação da identidade brasileira através de termos raciais, inicia-se um processo de elaboração de uma raça brasileira. Segundo o ensaio de Hebe Mattos, a imagem do herói negro continua concentrada em Henrique Dias, enquanto que a imagem de Zumbi perde espaço para um novo componente, mais amplo e mais interessante: os negros libertos.

No século XX, a partir dos anos 1960, mais importante do que a heroificação de personagens negros, se torna a história da luta dos negros escravizados; os holofotes deixam de estar em quem é o herói negro e se voltam para a luta pela sobrevivência e pela a liberdade dessas pessoas. No entanto, é nesse contexto que Zumbi se consolida como herói nacional -através de pressões políticas de movimentos negros – e Henrique Dias desaparece da história. 

A questão que fica é: até que ponto estabelecer outros heróis nacionais não é apenas substituir um pelo outro? Talvez, vê-los como pessoas que constituíram a história do nosso país, pensando em suas contribuições para o contexto em que viveram seja mais interessante do que apenas apontá-los como heróis. Afinal, ter os holofotes da História voltados para apenas um personagem pode significar invisibilizar outros, assim como ocorreu com a figura de Henrique Dias no século XX.

Assista, no vídeo abaixo, a comissão de frente da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval de 2019. O vídeo completo pode ser encontrado na Conclusão do Blog.

Comissão de Frente “Eu quero um país que não está no retrato” Estação Primeira de Mangueira, Carnaval 2019. Via Rede Globo

II- “Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”

No ano de 1982, a Revista Mulherio publicou um artigo escrito pela historiadora Lélia González, chamado “De Palmares às escolas de samba, tamos aí”. Trinta e sete anos depois, este poderia facilmente ter sido a manchete de inúmeras revistas e jornais referenciando e trazendo a reflexão em torno das provocações trazidas pelo desfile da Escola de Samba Mangueira de 2019, em que, como o carnavalesco responsável da escola Leandro Vieira evidenciou logo ao início da exibição do Desfile na televisão brasileira:

“O enredo da Mangueira é um olhar para a história do Brasil interessado nas páginas dos ausentes: a história de índios, negros e pobres. Heróis populares que não foram para os livros. Gente que a gente não aprende na escola. É a história (…) de tantos outros que não tiveram protagonismo .”

O Desfile da Mangueira nos chama à refletir principalmente sobre nossa trajetória escolar e quais narrativas são sempre evidenciadas pelas bases curriculares, livros didáticos, pela mídia, pela história pública em geral, etc. Se nos questionarmos quais sujeitos e regiões têm visibilidade e agencia ativa ao longo da historicidade, quais destes aparecem? A certeza que temos é que estes não são os negros, os índios, as mulheres, não-europeus. A partir desta reflexão central é que discutiremos neste post as representações e imaginários em torno da construção de narrativas históricas de sujeitos negros e como o desfile da Mangueira também contribuiu para a reflexão de como é construído nossos olhares às populações africanas e afro-descendentes, sobretudo afro-brasileiras.

As representações e narrativas construídas em torno de sujeitos negros sempre foram criadas através de olhares do Outro, qual era cercado de interesses. Ao longo século XIX, o chamado racismo científico europeu passou a evidenciar cada vez mais as construções de imaginários em torno do que seria continente africano, sujeitos africanos e africanos escravizados, sendo estes considerados primitivos, inferiores, passivos, marginais, etc. Até hoje podemos observar as consequências e reproduções da construção desses imaginários, principalmente em reproduções de falas, representações e inúmeras violências racistas, que para a filosofa brasileira Sueli Carneiro, a partir de Boaventura Sousa Santos, tem como uma das principais consequências o chamado epistemicídio:

“(…) o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo.”

(CARNEIRO, 2005)


Zumbi dos Palmares, é um sujeito negro que teve sua trajetória marcada na luta antirracista ao longo da história das lutas de sujeitos, organizações e movimentos negros afro-brasileiros e que nos faz repensar muitas construções que estão em volta. Uma das pautas dos movimentos negros brasileiros – sobretudo o Movimento Negro Unificado (MNU) ao longo do século XX era a efetivação do dia 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, sendo este o marco da execução de Zumbi em 1695. Lélia González, que além de historiadora foi militante do MNU, escreveu, no mesmo artigo do jornal, na década de 1980, sobre a importância da memorização de Zumbi e desta data para a luta antirracista; todavia, durante sua escrita, é essencial que possamos refletir sobre a construção das narrativas e heroicização de sujeitos históricos. A partir do trecho a seguir, nos abre o questionamento: a heroicização de sujeitos históricos evidência e contribui para uma narrativa que os coloca enquanto sujeitos ativos? Ou apenas “inverte a pirâmide”, como escreve o sociólogo Carlos Lopes em “A pirâmide invertida” (1995), enaltecendo e heroicizando determinados sujeitos sem colocá-los enquanto sujeitos ativos?

“(…) o negro Zumbi dos Palmares, assassinado nesse mesmo dia, no ano de 1695, pelos representantes do escravismo. Seu ‘crime’ foi ter liderado uma luta de vida ou morte por uma sociedade justa e igualitária; onde negros, índios, brancos e mestiços viviam do fundo de seu trabalho livre e eram respeitados em sua dignidade humana. Essa sociedade efetivamente democrática, existiu em Palmares, que foi o primeiro Estado livre das Américas e um Estado criado por negros.”

(GONZÁLÉZ, 1982)

No ano de 1983, o escritor Abdias do Nascimento, junto à outras e outros membros dos movimentos negros brasileiros marcam mais uma das representações em torno de Zumbi e de Palmares: a memorização e reconhecimento do espaço onde havia sido Palmares, pelo  Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN). A década de 80 marcou, também a institucionalização do chamado Instituto Palmares, em prol do reconhecimento e garantia de direitos de de comunidades quilombolas brasileiras e a legitimação do 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência Negra, como é possível salientar através da gravação presente no acerto da plataforma digital do IPEAFRO:
http://ipeafro.org.br/acervo-digital/videos/abdias-no-memorial-zumbi-1983/?fbclid=IwAR0zNjmtraAeR_7D3kGaT5Vk820yzN3eiKxJp8R1irIWuinYujEBMzvZ_Yw

Podemos observar como as representações e construções narrativas são diversas e plurais, como no próprio desfile da Mangueira. Ao longo da narração dos jornalistas durante a exibição dos desfiles na tv aberta, foi possível observar certos comentários, principalmente quando houve a aparição do carro alegórico marcando a história de Palmares junto à Zumbi, Dandara e Aqualtune; figuras relembradas e heroicizadas, sobretudo pelos movimentos negros; que devem ser refletidas, questionadas de o porquê não estão presentes nos livros didáticos e na chamada “história oficial”; e se estão, como tem sido suas representações.

As falas mais recorrentes dos jornalistas referindo ao carro alegórico foi o colocando como “um altar, como se esses heróis estivessem sincronizados nesse altar”; “os quilombos eram isso; para manter as tradições culturais e abrigar esses negros que conseguiam fugir”; “o quilombo era para recriar a África”; e “são muitas histórias que a gente desconhece, né”. Portanto, por que não conhecemos tais histórias? Será mesmo desconhecimento ou invisibilidade de narrativas não hegemônicas? Falar e colocar como sujeitos históricos e ativos, negros, índios e pobres e, logo, questionar e romper a chamada história oficial, buscando outras referências, narrativas e memórias é vantajoso para quem? E por que nas escolas, nos livros didáticos, nos planos curriculares, na mídia e em nossa memória nacional, não enaltecemos tais sujeitos, espaços, narrativas e povos? Que resistem até os dias de hoje contra todo histórico genocida e epistemicida. Pois, como cantam um dos versos do samba enredo deste ano da Mangueira:

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
…”

“Ao morrerem, tornaram-se vivas na nossa memória.”

(GONZÁLEZ, 1982)

    História: campo de disputa. Dos livros didáticos ao Carnaval

    Foram nas alegorias expostas pela Mangueira no ano de 2019 que foi dado o recado ao povo brasileiro. Uma narrativa silenciada pela História Oficial é evocada e o samba mais uma vez torna-se uma importante ferramenta para retomar o que é a História, pra o que ela serve e suas diferentes possibilidades. O samba enredo vencedor da Mangueira elucida um silenciamento ensurdecedor, quando personagens como Dandara, os Cariris, os Tamoios e Francisco José do Nascimento, mais conhecido como Dragão do Mar são desconhecidos dentro dos muros das escolas.

    A música e o carnaval são importantes expoentes das vozes silenciadas deste Brasil, possibilitando iluminar muitas vezes o que não é exposto no ensino de História. Não é preciso buscar longe, fora das alegorias carnavalescas podemos apresentar uma segunda narrativa musical, “Não foi Cabral”, o funk de MC Carol que de maneira mais direta leva aos ouvintes questionarem a “História Tradicional” que ainda é difundida no Ensino da História.

    A partir das novas demandas sociais, dos questionamentos relacionados aos mitos originários que dizem respeito a heróis nacionais, é possível reconhecer a importância de construir uma narrativa que problematize nossa história, a qual, normalmente, não permite aos grupos heterogêneos que compõem este país se identifiquem ou se enxerguem dentro dos livros didáticos ou das histórias contadas nas escolas.

    É preciso reconhecer outros espaços educativos, como o carnaval – o Carnaval da luta, resistência, da arte e da cultura popular – espaços que também estão no campo de disputa em torno da memória nacional           ; um importante locus da narrativa historiográfica, colando o Brasil reconfigurado, com uma nova bandeira, como a que foi apresentada pela Mangueira no carnaval de 2019. 

    Conclusão: das narrativas que as história não conta

    A História ensinada na sala de aula é pautada em uma “História verdade” o que faz com que seu ensino seja engessado em uma única forma de explicação possível. A história enquanto campo de ensino se constitui no século XIX. Seu contexto era do crescimento do nacionalismo, portanto, a História teria como “função” dar suporte para que com a formação das nações modernas fosse construída uma História geral do Brasil e as “tradições comuns”, com a ideia de criação de uma unidade, e uma nação com sentimento de pertencimento. Nesse contexto a História produzida tem como metodologia narrar a história dos grandes feitos, de personagens heroicos, que seriam os construtores da nação, e por isso mereciam ser exaltados. Essa era também uma história positivista, ou seja, traz uma ideia de progresso e o tempo é apresentado de forma linear, em suas datas e fatos, o que diz de uma perspectiva europeia, onde o tempo se apresenta de forma simplificada como uma sucessão de fatos.

    A historiografia sofre mudanças significativas quase um século após, de forma a romper com essa visão factual, mudando também os seus atores. Existe, entretanto, a problemática do ensino de história levado para sala de aula que muitas vezes ainda não fez esse movimento, sendo ensinada desta forma uma História que é do século XIX, ou seja, há um “abismo” entre história feita na academia e a história ensinada no espaço escolar. Dois grandes exemplos dessa falta de diálogo é a mudança historiográfica percebida através dos textos já trabalhados de Hebe Mattos e Maraliz, ambas as autoras problematizam como os heróis na história são fruto de uma construção, e como fica claro no Texto da segunda autora uma construção muitas vezes “forçada”, no entanto a história levada para o espaço da sala de aula se baseia ainda nessas figuras assim como na factualidade daquela história feita no século XIX.

    Outro ponto muito importante é pensar sobre uso da memória no Ensino de História, pois a memória, assim como a História e seu ensino, dizem de algo que foi construído e isso passa por pessoas, pessoas essas que são dotadas de características e visões especificas inclusive da história, é preciso levar em conta então, que ambas não são neutras, são construções sociais. Para pensar em seus atores o foco não pode ser único, tem que sofrer deslocamentos diversos, inclusive olhando para seus bastidores e como ele foi construído. Nos bastidores das memorias que se reproduzem como “memória oficial”, se encontram muitas vezes as memórias desses alunos e suas famílias, pois nas seleções feita por essa memória não foi algo tido como importante para ser lembrado.

    Reconhecendo-as como construções estão passiveis de serem desconstruídas o tempo todo, desta forma elas não estão dadas e passam por constante transformação. Assim como a memória individual possui intencionalidades na seleção do que deve ou não ser lembrado, a memória coletiva também faz uso desse instrumento, do mesmo modo que a memória histórica que se compõe de uma seleção daquilo que, em cada tempo, é legitimado para ser lembrado, isso deve ser levado em conta pelo professor que deve levar a seus alunos essa discussão e questionamento.

    A condição de lembrar e esquecer é ao algo que se constrói ao longo do tempo e sua seleção passa tanto pelas sociedades como pelos próprios indivíduos. Mais claramente perceptível ao se pensar nos objetos pessoais ou edificações que são convencionadas a serem “guardadas”, sendo salvos consequentemente da perda ou do esquecimento, isso se deve a uma intervenção de preservação de algo, ou de seus significados, isso diz de como se pretende lembrar de algo. Contudo, com a passagem do tempo, novas redes de significados vão se construindo em função daquilo que foi preservado, devido a novas experiências pessoais com relação aquele objeto. Assim, uma peça que hoje se encontra em um museu e que pertencia a alguma pessoa, não tem no museu o mesmo significado que teve na vida daquela pessoa. Ao contrário disso, ao entrar em museu esse objeto “morre de sua relação de vida” e passa a receber outro sentido perdendo sua função original, portanto, esse objeto passa por uma musealização. É preciso ir além e pensar porque esse objeto foi escolhido para ser lembrado. Além disso a reflexão sobre os porquês dessa escolha é muito importante, para se questionar a quem se interessa e qual memória foi escolhida para estar por traz dessa escolha.

    A memória é um campo que se encontra em constante disputa, assim como suas seleções, ou seja, a escolha do que é lembrado ou silenciado, desta forma, o que é passível de lembrança entra num “jogo de poder”, e seu controle se dá por grupos sociais específicos e dizem respeito sempre aos processos de construção e poder. Ao entendermos que as memórias de um grupo social emergem como seleção, entenderemos também que, ao lado do que foi lembrado, muitas outras memórias foram excluídas. Pensando no ensino de História isso se aplica ao que é selecionado para ser estudado, portanto, essas operações de seleção têm como consequência a exclusão de outras temáticas, pois umas são escolhidas em detrimento de outras.

    A escola como lugar de memória deve ser levada para sala de aula, e seu ensino deve promover a educação do olhar desses alunos, de forma a questionar quais são as memórias que se colocam nesses espaços. Assim, a escola deve ser um lugar aberto e disposto a fazer discussões de forma constante e não isoladas apenas em datas especificas de comemoração, como acontece no dia do índio que vira uma fantasia para crianças que são pintadas, assim como o dia da consciência negra, a fala com relação a essa temática também se restringe a uma data e é apenas nessa data que as discussões se voltam para esse assunto. A falta de discussões mais sistemáticas, para além de uma data, gera ainda mais silenciamentos, pois, a representatividade tem um grande significado para crianças e jovens que estão em fase de formação de suas identidades,

    A importância do desfile da escola de samba Mangueira está então, no seu alcance, ou seja, onde a historiografia ainda não tem conseguido alcançar e espaços como os museus que apesar de estar em um processo de mudança de suas narrativas, ainda são espaços muito restrito a um tipo de público, pois muitos não se sentem representados como parte desses lugares. É incrível o aproveitamento que a escola faz desse espaço que ela ocupa para levar a esfera pública e essas pessoas “comuns” “a história que história não conta”.